domingo, 11 de outubro de 2009

Eu, minha meninas, e as compras III


Os posts com os surtos nas compras fizeram certo sucesso. Quem lia, elogiava, me contava seus próprios surtos e eu dei boas risadas com histórias que eu jamais poderia imaginar.
Aquela minha amiga, tão centrada, tão controlada, tem dois pares de sapatos iguais no armário? Impossível! E sabem o melhor (pior)? Ela nunca usou nenhum dos dois.
Desta vez vou contar o santo – a Santa Gisele - “Minha Colega de Trabalho”, médica, intensivista, treinada na vida e na profissão a agir com rapidez e coerência... pois bem...
A Gi tinha um sapato preto e branco – bicolor. Ela adorava esse sapato que havia comprado em São Paulo. Lembrava-se de que, no dia da compra, pensara:
- Eu devia levar dois. Esse sapato é a minha cara!
Sensata, só comprou um.
Anos depois, o tal sapato, de tão usado, não estava em condições nem de ser doado e Dra. Gi, novamente em São Paulo, resolveu procurar um substituto à altura. Encontrou um similar e, desta vez, não hesitou – comprou dois!
E aí... ambos os dois pares, juntos, no exagero, na redundância - por haver infligido aos seus pesinhos sofrimentos inenarráveis - passaram a repousar, unidos, no fundo de seu armário.
Depois deste e de outros relatos, tive certeza, “alguma coisa acontece” em Sampa, mas não é onde Ipiranga e São João se cruzam...
Fui informada de que no Century Twenty One, em Nova York, eu também não fui a única a surtar não...
A Riachuelo parece ser outro Templo da Perdição. Por lá, outra “Colega de Trabalho” atacou uma arara cheia de cachecóis e levou pra casa um branco, uma azul, um verdinho, um marrom, um marrom com laranja...
Estão todos lá no closet dela viu? Se alguém precisar ela empresta.
Outro ponto interessante: percebi que, quase sempre, quem conta um surto tem a necessidade de contextualizá-lo:
- Eu tinha acabado de terminar um namoro...
ou
- Eu estava no Rio, com meus dois filhos pequenos, meu marido estava estudando para passar em um concurso, fui convidada para ir a uma festa...
E aí... aquele vestidinho caríssimo exposto na vitrine foi comprado em menos de 10 minutos.
De modo que, a surtada que encerrará a trilogia, merece que seu contexto seja compartilhado.
Quem nunca passou uma temporada fora do Brasil e morreu de saudades de um arrozinho com feijão atire a primeira pedra nesta minha amiga, “Mãe Marista”.
Flávia é loira, tem olhos azuis – é mesmo linda. Linda e hiperativa. Totalmente funcional. Faz tudo acontecer com eficácia, desenvoltura, competência e rapidez. Deste modo ela administra finanças, obras, campanhas beneficentes e, claro, a vida do marido e de três filhas pequenas. Só por isso ela já teria o direito de surtar, ao menos, uma vez por semana. Mas, em geral, ela é muito comedida, compra o que precisa, avaliando a qualidade, a durabilidade e o preço.
Para vocês terem uma idéia, a Flávia é indicada para ser entrevistada por representantes de empresas que querem se instalar em Brasília. É verdade. Ela avalia os produtos, dá um parecer e...voilá! Lá se vai um representante comercial sabendo que seu produto é bonito, sofisticado e podia ser melhorado, mas que se não for, vai ser vendido em Brasília do mesmo jeito. Comprado por ela? Jamais!
Flávia é mineira, mora em Brasília há anos, mas seu surto aconteceu quando ela morava nos Estados Unidos. Ela já estava lá há séculos. O marido foi a trabalho. Como as meninas eram bem pequenas, ela se dedicava “apenas” ao lar. Arrumava, lavava, passava, cozinhava, levava as meninas à escola... Com amor, carinho, aproveitando aquele momento e sabendo que as meninas teriam aquelas lembranças para sempre. Entretanto, contava os dias para voltar ao Brasil, e faltavam exatamente 58 dias para Flávia se ver livre das roupas de dona de casa americana, quando...
Soube de uma feira de produtos brasileiros na cidade em que morava, colocou as meninas no carro e voou para o lugar. Ela conta:
- Gente, quando eu entrei na feira, eu senti um cheiro de pastel... Enlouqueci!
Pediu um de carne, um de queijo, outro de banana com queijo, um de queijo com goiabada. Enfim, toda a mineirice dela veio à tona.
Ela segurava um pastel, colocava outro na boca, entregava um para uma filha, outro para a outra. Totalmente feliz, preenchida, vivendo aquela alegria que só a gordura e o açúcar podem nos trazer.
Não gente, o surto não foi esse não. Ou, melhor, não foi só esse não.
Ela continuou andando pela feira e encontrou pão de queijo. Pão de queijo. Puro. Simples. Pão de queijo.
Ela comeu horrores e fez as meninas comerem também.
- Come filha, é pão de queijo!
Um, dois, cinco, nove pães de queijo depois... quando já estava saindo, a vendedora ofereceu:
- A Senhora não quer levar uns saquinhos para assar em casa?
Ela avançou na mulher.
- Claaaaaaro! Quantos a senhora pode me vender?
- Eu tenho muitos. Quantos a senhora quer?
Pergunta maldita.
Flávia fez as contas. Cada saquinho tem uns 15. Nós somos 5. Cada um deve comer uns 6 por dia. Então são dois saquinhos por dia. São 58 dias... A senhora tem uns 100 saquinhos?
A vendedora está sorrindo até hoje. Muito contente e solícita, ela vendeu para Flávia os 100 sacos de pão de queijo congelados e também os containeres refrigerados onde eles estavam guardados, para que ela pudesse transportá-los e armazená-los em segurança.
Pensam que acabou?
De jeito nenhum. Surtada em 100, surtada em 1000.
Enquanto rolava a operação “junta gente para levar esses containeres até o carro”, a tal vendedora resolveu oferecer água de coco para as crianças.
- Água de coco? A senhora tem água de coco? Por que não me disse antes?
E pronto.
- Beba filha! Beba! É água de coco!!!
(Detalhe, as meninas não nasceram nos Estados Unidos. Elas estavam cansadas de saber o que era água de coco e pão de queijo!).
Resultado: além dos 100 sacos de pão de queijo, Flávia levou para casa 250 garrafinhas de água de coco. Daquelas pequeninhas, de 250 ml - para que cada um pudesse tomar ao menos uma por dia, até a hora de voltar pro Brasil.
- Mãe, isso não estraga não?
- Não filha, está congelado. A gente vai descongelando aos poucos...
Todo surto, que é surto bom mesmo, acaba diante de um marido boquiaberto. Com a Flávia não foi diferente.
- Meu amor o que é isso?
Ela se deu conta da loucura. Perdeu a pose? Nunca!
- Viu, meu bem, o que eu achei? Nesses últimos dias nos vamos viver como se já estivéssemos no Brasil!
E não se falou mais no assunto. Ela foi assando os pães, dia após dia e foi tomando água de coco, dia após dia.
Lógico que lá pelas tantas ela já estava oferecendo aos vizinhos, ao carteiro, dando para os cachorros da vizinhança e, mesmo assim, sobrou muito pão de queijo e muita água de coco.
Sorte dela ter um marido compreensivo, fosse um outro, ela só ia voltar ao Brasil depois de ter tomado a última gota de água de coco.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Eu, minhas meninas, e as compras II


Para que ninguém me acuse de contar só os surtos das minhas amigas, vou contar um dos meus.
Foi em 1996. Eu tinha acabado de chegar de uma viagem de 40 dias pelos Estados Unidos – Arizona, Texas, Colorado e Utah. A viagem foi, na verdade, uma jornada xamânica. Eu acampei no deserto, desci o Grand Canyon montada numa mula, fiz sauna sagrada, participei de rituais de cura e de experiências de auto-conhecimento comuns entre índios americanos. Eu cheguei exausta, mas, logo depois desse programa de índio norte-americano, 3 de minhas melhores amigas avisaram: - Estamos indo para Nova York fazer compras.
Eu, que estava precisando de uma boa dose de realidade, não quis nem saber da falta de grana. Pedi uma ajuda a minha mãe, arrumei minha mala e fui.
Meu surto foi no Century Twenty-one, um shopping que ficava ao lado das torres gêmeas.
Eu estava passeando entre araras com roupas de estações passadas de estilistas famosos, quando vi um blazer do Jean Paul Gaultier, exatamente do meu número.
Gaultier era, na época, o queridinho da Madonna.
O tal blazer estava amarrado na arara. É, estava preso por uma corrente, com cadeado e tudo. Sabem aquelas correntes de prender bicicleta? Aquelas que ficam dentro de uma mangueira de borracha transparente? Pois é. Para que eu pudesse experimentar meu objeto de desejo, eu precisava de uma vendedora com uma chave.
Rapidamente pedi ajuda a minha amiga Rosa.
- Rosa, olha o que eu achei! Mas, tá preso...
Ela puxou o cabide e a etiqueta com o preço apareceu :US$500,00.
A Rosa falou olhando bem nos meus olhos:
- Você tá doida?
- Rosa, é do Gaultier!
- Podia ser do Van Gogh, custa US$500,00!
- Não, Rosa. Olha aqui. Ele custa US$1.000,00. Só que está com 50% de desconto. Eu vou economizar US$500,00.
Já me puxando para longe do blazer a Rosa falou:
- Pois você vai economizar US$1.000,00. Eu vou te tirar daqui agora!
A vendedora vendo aquele movimento, chegou perto e disse:
- Do you wanna try it?
A Rosa deu pulo e respondeu:
- No, thank you! Ela não vai experimentar nada (Em português mesmo, juro!).
A vendedora toda simpática, com a chavinha na mão, disse:
- Try it! It’s sooooo beautiful!
A Rosa foi longo dizendo:
- Dani, o blazer é de ve-lu-do! Você mora em Brasília, lembra? Vai usar esse blazer de US$500,00, quando?
Eu consegui me livrar dela, agarrei o blazer outra vez e disparei para a vendedora:
- Yes... It is reeeeally beautiful!
Eu parecia hipnotizada. Aí a Rosa se desesperou e chamou minha outra amiga:
- Meg, corre aqui! Me ajuda! A Dani surtou.
A Meg, muito calmamente, se aproximou e ainda sem ver o blazer e sem saber do preço disse toda meiga:
- Deixa ela comprar, Rosa...
- Deixo nada! Ela depois se recupera e me pergunta porque foi que eu deixei, que tipo de amiga eu sou, porque eu não bati na cabeça dela com um tijolo...Você parece que não a conhece...
A vendedora neste momento pegou a corrente e começou a abrir o cadeado. A Rosa não se conteve:
- Dani, olha bem pra mim! Esse blazer É VERDE! Ele é da cor das cortinas do Teatro Nacional! Você vai ficar parecendo a Scarlet O’hara, com roupa feita de cortina. Larga esse blazer! Vamos pro hotel. Se amanhã você ainda quiser um blazer de veludo verde, eu volto aqui com você, e você compra.Combinado?
Sai do shopping de cabeça baixa, angustiada. Ainda na porta olhei pra Rosa e disse:
- Amiga, e se amanhã a gente chegar aqui e ele já tiver sido vendido?
Ela me abraçou e disse:
- Eu te garanto, ele vai estar aqui! Ele vai ficar aqui pra sempre!

Eu, minhas meninas, e as compras I





Sou uma mulher cercada por mulheres desde o berço. Ao nascer 5 Marias me esperavam: minha mãe - Maria Assumção, Maria da Glória - minha irmã mais velha, as gêmeas – Maria Fátima e Fátima Maria, e Maria Lúcia. Os homens estavam lá – meu pai, meu irmão César – mas não em primeiro plano. Como ocupar o primeiro plano com elas tendo tanto a falar? Difícil demais...
Na juventude me acostumei a andar em bando, mas desde lá meu bando era feminino. Ainda jovem, mas já adulta, descobri que melhor do que ter amigas era ter inimigas. Vou explicar.
Eu e certo grupo de amigas, ao invés de fazermos “amigo-oculto” nos fins de ano, fazíamos “inimigo-oculto”. Cada uma comprava para a outra algo que fosse barato, trash, que lembrasse um episódio triste, desagradável, ocorrido naquele ano. A criatividade ia longe. Fazíamos encenações, compúnhamos músicas, construíamos artefatos surrealistas. Passamos a nos chamar de “As Inimigas”, considerando o fato de que só uma inimiga é capaz de rir da sua desgraça com tamanha desenvoltura. Com o casamento, os filhos e a maturidade, As Inimigas deixaram de trocar esses “presentes”. Mas, nunca nos separamos. Agregamos novas inimigas ao grupo e seguimos a vida.
Sou psicóloga, por isso desde a graduação vivo cercada por profissionais de saúde, em geral mulheres - médicas, enfermeiras, nutricionista, psicopedagoga, dentistas. E daí surgiu meu segundo bando, o grupo que numa alusão ao Silvio Santos chamo de “Minhas Colegas de Trabalho” – uma verdadeira equipe multidisciplinar!
Três, neste caso, não é demais. Tenho outro grupo de amigas com quem me encontro regularmente – o das “ Mães Marista”. Todas são mães de crianças que estudam na escola do meu filho. Vocês podem pensar que esse grupo é chato, que a gente só fala de filhos, de deveres de casa, de professoras, de empregada... Não vou me dar ao trabalho de desmentir. Só digo que este grupo é o mais boêmio - é o que mais bebe, mais come, mais dança... Tire suas próprias conclusões...
Foi entre as Mães Marista que o assunto deste post começou:
- Vocês já surtaram nas compras? Já compraram alguma coisa e se arrependeram mortalmente depois?
A pergunta veio de uma amiga que é economista, trabalha no Banco Central. Pense! Eu pensei que ela ia puxar a conversa para um lado, e ela imediatamente virou pra outro. Dizendo em seguida:
- Gente, eu surtei na Riachuelo!
Eu caí na gargalhada! - Na Riachuelo? Jesus, que perigo!
Ela logo contou de sua loucura por roupas de cama, sejam elas: as ótimas, as muito boas, as boas, as muito caras, as caras e, como não? As de bom preço.
Ela contou que entrou na Riachuelo e viu a palavra mágica: PROMOÇÃO! Os edredons eram bons, bonitos, estavam a um bom preço.
Como não estariam? Era verão. Moramos em Brasília... (Onde nem no inverno a venda de edredons deve ser grande...)
Minha amiga agarrou 2 de casal para ela, e 4 de solteiro. Dois para cada filho! (Se eu mereço dois eles também merecem, como não?).
Ela catou três vendedoras para que a ajudassem a carregar tudo até o caixa e lá se foi. Foi? Foi. Até o carro. Numa verdadeira caravana. Ela e as três vendedores atrás, ajudando a carregar os edredons.
Naquela fila indiana meio doida caminhando pelo shopping a ficha começou a cair. Minha amiga pensou:
- Isso não vai caber no carro!
Abriu o porta-malas, apertou um aqui, outro ali. Com todos os bancos abarrotados e sem conseguir enxergar sequer uma pontinha do vidro traseiro, ela rumou pra casa.
- Onde é que eu vou colocar esses edredons quando chegar em casa? Pensava ela pelo caminho.
- Ah, meu marido me ajuda!
Ledo engano! Ela desceu do carro. Pegou um edredon e subiu em busca da tal ajuda. Mas, quando ela abriu a porta, com apenas um edredon nas mãos, o marido a olhou espantado e perguntou:
- O que é isso? Para que você comprou um edredon? Onde é que você vai colocar isso?
Ela nem respondeu, deu meia volta e rumou para a Riachuelo. Devolveu tudo! Os seis edredons!

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Senhor, Piedade!

























Em uma bela manhã de primavera - o céu azul, azul - uma cliente que eu já acompanhava há quase um ano, entrou no consultório de um jeito nada peculiar.
Ela, em geral, chegava com um sorriso no rosto. – "Bom dia! E aí, doutora? Como foi o fim de semana?". Andava até a poltrona com se fosse um barco, navegando. Caminhava com certo molejo e atracava suavemente na poltrona.
Naquela segunda-feira, ela mal me olhou. Entrou esbaforida, jogou-se na poltrona, colocou as mãos fechadas sobre os olhos e, enquanto eu me sentava diante dela, soltou uma frase curta e direta:
- Eu sou bipolar! Eu sei que sou!
Meus óculos escorregaram para a ponta do meu nariz, quando eu, no susto, tentei olha-la nos olhos.
Não que ela não fosse bipolar. Era. Dos pés ã cabeça, da primeira linha do CID à última do DSM, o diagnóstico lhe cabia, sem sombra de dúvida.
Eu jamais havia lhe colocado um rótulo. Sinalizava suas alterações de humor, os riscos de seus altos e baixos, as conseqüências para quem estava perto.
Em terapia ela já havia explorado inúmeras vezes as dores e delícias de uma vida nada padrão, nada careta.
Ela fazia uso de medicamentos desde a adolescência, com dificuldade, com resistência, por vezes anarquicamente, mas usava e sabia por que os usava. Ou não sabia? Fiquei confusa, surpresa. Perguntei: - E o que é ser bipolar?
Ela sentou-se mais na beira da poltrona e apontando o dedo na minha direção, falou:
- Viu? Se eu não fosse você ia me perguntar: De onde você tirou essa idéia?
Respondi com um leve sorriso nos lábios:
- Se você entrasse aqui correndo e me dissesse assim -‘Eu sou uma abóbora! Eu sei que sou uma abóbora!’, eu ia te perguntar: O que é ser uma abóbora? O que muda na sua vida agora que você descobriu que é uma abóbora?
- E que eu não quero ser bipolar. Ser bipolar é ser doente. Eu quero ser excêntrica, doida, diferente, especial, genial.
Ficamos as duas em silêncio, nos olhando, por uns minutos. Aí ela se acomodou na poltrona, respirou e disse:
- E aí? Como foi seu fim de semana?
Eu, como em todas as outras sessões respondi: - Normal. E o seu?
Então, ela, como em todas as outras sessões, começou a me contar todas as excentricidades e doidices de seu fim de semana.
Enquanto ela falava, pensei no Cazuza – o poeta da minha geração. A letra do Blues da Piedade passou pela minha cabeça e, pela primeira vez, vez total sentido.
Seus versos falam de:
Pessoas de alma bem pequena/ Gente que não muda quando a lua é cheia/
Os versos pedem:
Piedade Senhor piedade pra essa gente careta e covarde/
E Cazuza propõem:
Cantar pra pessoas fracas/ Que estão no mundo e perderam a viagem/ Somos iguais em desgraça/ Piedade senhor pra esta gente/ Pra essa gente careta e covarde/ Lhes dê grandeza e um pouco de coragem.
Bom material para minha própria terapia – Nós, os médios, medianos – estamos condenados à mediocridade, à dita normalidade.
Senhor, piedade de nós!


Este post é ficcional. Na verdade, ele é fruto de um delírio. A única coisa real é que, só agora, o Blues da Piedade passou a fazer sentido para mim.


domingo, 4 de outubro de 2009

Sobre quebra-cabeças...


Meu filho Mateus adora quebra-cabeças. Ainda bebê, começou com os de peças gigantes, de madeira, que eu comprava na Feira dos Importados. Depois, passou para os de peças quadradas, próprios para crianças pequenas e, logo depois, ele já estava montando os de 25 peças, os de 50, os de 100, os de 150, os de 500, os de 1500.
Lógico que eu tenho que ver, que ajudar, que não deixar ninguém mexer... coisas de mãe, de parceira, de fã. Durante a execução destas “tarefas”, comecei a pensar nas semelhanças que existem entre um quebra-cabeça e a vida.
Em um quebra-cabeça cada peça é parte muito importante no grande quadro. Na vida, cada pessoa, cada acontecimento monta nossa história.
Como peças de um quebra-cabeça, cada um de nós é único, especial, tem seu próprio jeito. Embora sejamos semelhantes, não há duas pessoas iguais. Ironicamente são nossas diferenças que nos fazem “encaixar”.
Um dia vi que o Mateus cismou que havia uma peça que pertencia a um lugar em particular. “Mãe essa eu sei que é parte do Tai Lung!” (Tai Lung é o leopardo da neve do filme Kung-Fu Panda). Só que ele tentava e não encontrava um lugar pra ela. Deixava a peça de lado, depois tentava outra vez, e nada. Passava um tempo, ele esquecia que já havia tentado, tentava outra vez. Ele estava focado, certo do fato de que a peça era daquele espaço.
Pensei em quantas vezes eu fiz a mesma coisa em minha vida, tentando fazer acontecer coisas que simplesmente não eram para ser. Nada do que eu fiz mudou isso.
Eu vi também que muitas vezes perdemos um tempo danado procurando um pedaço específico (o cara certo/a mulher certa, o melhor emprego/o melhor lugar para trabalhar, o apartamento/a casa ideal, a cidade perfeita para morar).
O Mateus um dia disse: “Mãe, agora eu vou achar o pé do Bumblebee (Transformers), não é possível que eu não ache! Ele é amarelo!”. Ele virou, mexeu, embaralhou ainda mais as peças. Não achou. Ficou P. da vida! Acusou a faxineira de ter mexido na mesa para limpar, de ter jogado a peça no lixo. Revirou a caixa do jogo de cabeça para baixo. Nada. Aí ele foi ao banheiro, e quando voltou achou imediatamente a peça.
Tenho enorme respeito pelas peças que me montaram como eu sou hoje. Morro de saudades do meu quarto na casa dos meus pais, do meu apartamento no Guará, das dores e alegrias da minha vida de solteira. Mesmo que eu tenha tentado forçar a barra e colocar peças em um lugar em que não cabiam, elas acabaram por se encaixar em outro ponto e lá, tem sua importância.
A diferença entre quebra-cabeças e a vida é que: os quebra-cabeças têm uma forma fixa, a gente monta, desmonta, remonta e o quadro montado é sempre o mesmo. Na vida, não. Quando a vida é "remontada", revista, tudo pode ganhar outro significado. Uma peça que se encaixou em um lugar por um tempo, pode, em outro, não se encaixar mais. Você pode olhar para pessoas e acontecimentos em sua vida “N” vezes e a cada hora ver coisas que não via antes.
Mas, de qualquer modo, precisamos buscar dar sentido ao todo. Ainda que esse sentido possa mudar o tempo todo.
“Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. ‘Quem sou eu no mundo?’ Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.”
(Paulo Mendes Campos, em Para Maria da Graça).

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Meu Lendário Cavaleiro


- Mãe, lê pra mim essa história que você está lendo?
- Ah filho, é um livro de adulto! Acho que você não vai gostar.
- Sobre o que é?
- Sobre uns cavaleiros, monges cavaleiros (O Legado dos Templários, de Steve Berry, Ed. Record, 2007).
- Padres que lutavam?
- É filho, houve um templo em que eles lutavam mesmo, com armaduras, espadas, escudos e bandeiras, mas depois eles passaram a viver fechados dentro de mosteiros.
- Ah, mãe. Me interessa sim. Lê aí, vai:
- Tá bom. Nesse pedaço que eu estou lendo, tem um rapaz que quer se tornar um templário, um cavaleiro, e ele está diante do mestre fazendo um juramento. O mestre diz:

- "Você pede uma coisa grandiosa. De nossa Ordem, você conhece apenas a fachada. Vivemos nesta Abadia resplandecente, comemos e bebemos bem. Temos roupas, remédios, educação e realização espiritual. Mas vivemos sob ordens duras. E difícil tornar-se servo de outrem. Se quiser dormir, talvez seja acordado. Se estiver acordado, pode receber ordens para se deitar. Pode não querer ir onde for ordenado, mas terá de ir. Praticamente não fará nada que deseja.
Você pode sofrer bem todas estas dificuldades?".

(Capítulo 51, pág. 441).
E aí filho, entendeu?
- O que é Abadia?
- O lugar onde os monges moram, tem igreja, horta, o lugar onde eles dormem - tudo que eles precisam fica dentro da Abadia. Eles quase não saem lá de dentro.
Você acha que o rapaz respondeu que sofreria isso tudo para ser um cavaleiro templário ou não?
- Acho que ele disse que sim, né mãe? Qual é a dificuldade? É como ser criança. Quando a gente quer ficar dormindo, o pai acorda a gente pra ir pra aula. Quando a gente quer ficar acordado vendo TV, a mãe manda a gente dormir. A gente também ganha roupa, remédio, e o pai paga a escola, mas quando a gente está brincando mandam a gente ir comer, tomar banho, escovar os dentes. Criança também não faz nada do que quer, né?
- É filho... Que tal você pegar um livrinho da Ruth Rocha ou da Eva Furnari pra ler aqui do meu ladinho, hein?

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Quantos anos você tem?

























Minha avó faz 100 anos no próximo dia 26 de agosto. A família não agüentou esperar. No último sábado minhas primas fizeram uma grande festa, chamaram todos - netos, bisnetos, tataranetos e amigos de longa data (Ela ainda é amiga de pessoas que foram seus vizinhos há mais de 30 anos!).
Foi uma tarde inacreditável.
Minha avó tem a mente muito ativa. Gosta de ver os telejornais e discute política com uma agilidade de dar inveja. Eu olhava pra ela durante o aniversário e achava difícil acreditar que ela já tenha 100 anos.
Durante a festa percebi que os mais velhos guardam de nós (os relativamente mais novos) uma imagem mental de quando éramos beeem, beeem, mais jovens. Fui tratada como a caçulinha do José, várias vezes.
As pessoas paravam minha sobrinha e perguntavam se ela era a mãe dela e eu travei longas conversas como se fosse minha irmã mais velha, antes de criar coragem para desfazer o engano.
Outra descoberta foi a seguinte: tem gente que melhora com o tempo (minhas primas estão mais belas a cada ano), tem gente que nem tanto, mas o que você sente quando era criança diante de uma pessoa, raramente muda.
Minha mãe tinha uma amiga, Dona Nini, que hoje deve estar com uns 75 anos - ou seja, quando eu era pequena ela devia ter uns quarenta anos. Eu a achava M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-A! Ela era uma mulher elegantérrima. Eu ficava hipnotisada pelas jóias que ela usava. Adivinhem como ela estava na festa? Chiquérrima! Dona Nini usava jóias belíssimas, modernas, e se sentava à mesa com a mesma elegância, inúmeras vezes lembrada por minha mãe quando queria que eu me comportasse durante uma refeição. Para mim não houve sequer uma leve mudança. Ela é a mesma. Sei que não é. Sei que o tempo passou, que ela se despediu de muitas pessoas queridas de lá para cá, e que isso deixa sim marcas no coração e no corpo. Mas os gestos, a voz baixa, pausada, estão eternizados em minha mente – imutáveis.
Fiquei um bom tempo olhando para outra comadre da minha mãe, minha tia Maria Olívia. Ela está com mais de 80, com certeza, mas eu também só conseguia me lembrar de como ela e minha mãe conseguiam ficar horas, horas e horas conversando e rindo sem parar. E lá estava ela na festa, sempre querendo engatar uma boa conversa. Ali estava outra mulher excepcionalmente refinada na minha mente. Eu só conseguia me lembrar de como eu ficava espantada quando a via comendo sanduíches com garfo e faca. Nem um tomate, nem uma folhinha de alface - ousava sair do lugar. Mulher de governador, depois mãe de senador, andava de um lado a outro do estado do Acre fazendo campanha – em cima do salto! Gente, vocês não tem idéia do calor e dos lugares onde ela se metia!
Estava pensando nisso quando cheguei em casa, liguei a TV e ouvi a propaganda da Revista Boa Forma deste mês: “Tânia Kalil revela seus segredos para chegar aos 32 em boa forma”. Tomei até um susto! Fala sério, quem precisa de um truque para ficar bela com 32 anos?
Quem tem segredos de beleza a revelar é minha Tia Maria Olívia, é Dona Nini, é Dona Maria Alaíde – minha avó centenária. Elas souberam envelhecer honrando suas histórias de vida – isso é que belo!

Na foto Vovó Maria pergunta à tataraneta Giulia - minha sobrinha-neta (é, eu sou tia-avó): Quantos anos você tem?

sábado, 1 de agosto de 2009

Sabadão

Sabadão...
Um dos raros em que acordo de manhã e não vou pro francês (as aulas só começam na próxima semana!).
Tomo meu café na cama, agarro um livro e fico lá...Feliz, deitada!
Meu filho então me chama: “Manhêêêê!!! Você já acordou? Vem ver uma coisa aqui!”.
Não respondo.
Meu marido está no banheiro, a babá está na sala e a cozinheira na cozinha, por que é que eu é que tenho que ver a tal coisa?
Ele insiste: “Manhêêê! Vem ver... É o Tai Lung (leopardo da neve, vilão do filme “Kung Fu Panda”)... nesta fase ele destrói tudo!.
Eu entendi tudo.
Meu filho está jogando vídeo-game e quer que eu levante para compartilhar com ele a emoção de ver um leopardo da neve destruindo um templo com socos, chutes - golpes de Kung Fu.
Levanto.
Vejo meu filho pulando em cima do sofá, imitando o Tai Lung e a ponto de destruir minha sala. Olho a tela da TV, comento alguma coisa sobre a habilidade do Tai Lung e peço: “Filho, não pula no sofá... Você pode se machucar e vai acabar estragando o estofado”.
Volto para a cama.
Minutos depois meu marido me chama: “Amôô, você já leu meu blog?”. Agarrada no livro solto um: “Ainda não....”. Ele grita de longe: “Leu?”.
Solto o livro. Pergunto:”Sobre o que você escreveu?” Ele começa a falar.
Tenho que ir até a sala para ouvir o que ele está dizendo.
Faço um comentário sobre o post dele.

Volto pro quarto, deito.

Dois segundos depois a cozinheira bate na porta: “Acabou a água do galão, posso pedir pro moço trazer outro?”.
“Pode, pega o dinheiro no potinho que fica em cima do micro-ondas!”. O que ela imaginou? Que eu ia dizer não?
Consigo agarrar o livro e ler umas duas páginas.

A babá do meu filho bate na porta e diz: “Você está lembrando que seu filhote precisa levar uma cópia da certidão dele pra escola na segunda-feira pro dever de história?”.

“Não, não tô. Corre ali na papelaria e tira pra mim, por favor!”.

O que raios a professora de história quer com a certidão de nascimento do meu filho?. Tento novamente ler meu livro.
Instantes depois, meu filho me chama - outra vez: “Manhêê! Traduz um negócio que o Tai Lung está dizendo aqui pra mim, por favor!”.
E lá vou eu, outra vez pra sala.


“I’m at home again, master!”. ”This is not your home anymore and I’m not your master anymore”. Filho, o Tai Lung diz: “Estou novamente em casa, mestre”. O Chifu responde: “Esta não é mais sua casa e eu também não sou mais seu mestre”.

Volto para cama.


Nem bem eu deito, meu marido me chama: “Amôô, me faz um favor???”

Eu levanto.


Vou até a sala e digo: “Gente, vocês não tem medo de eu abrir aquela porta e sumir no mundo não?”.

Meu marido me olha com cara de espanto e responde: “Se você sair assim, de pijama, sem pentear os cabelos e sem escovar os dentes eu não tenho não. Rapidinho alguém chama o SAMU e eu já sei que você vai parar - no HPAP ( Hospital de Pronto Atendimento Psiquiátrico)!”.
Sabadão...é melhor ouvir um negócio desses do que ser surda, né?

Eu reclamo, mas é muito bom saber que sou importante na minha casa...

domingo, 7 de junho de 2009

Do baú - Ano Novo, vida nova, mas... calçando sapatos antigos?




















Texto retirado do baú - escrito para publicação na Revista Destaque em janeiro de 2005.



No fim de 2004 tive que explicar a meu filho o que penso que seja o reveillon - uma das difíceis tarefas da maternidade e da paternidade, ajudar na construção de conceitos.
Penso que o reveillon seja a celebração da passagem do tempo. A passagem do tempo nos diz que mais um pedaço da vida se foi, celebramos nossas conquistas, avaliamos nossas perdas, sonhamos com o que pode ser o futuro. Foi assim em 2004, desejo que seja assado em 2005...



No início de cada ano não raro escutamos alguém dizendo: “Ano novo, vida nova!”. O desejo de mudança está sempre presente na celebração do ano novo.

Muitas pessoas até escrevem uma lista de boas intenções: parar de fumar, fazer ginástica, caminhar, meditar... A verdade é que grande parte dessas pessoas acaba não efetivando essas mudanças, a despeito da passagem do tempo e de suas intenções mais honestas. Passadas as festas, a vida continua praticamente a mesma de sempre.
O que é preciso para que uma mudança realmente ocorra? Por que é tão difícil mudar? “Querer é poder”, dizem alguns, mas sabemos que só querer não é o bastante.
Querer é apenas um passo. Para ser alguém novo, modelo 2005, é preciso que, de alguma forma, o jeito de ser e de viver em 2004 morra. Somente haverá vida nova se tivermos a graça de esquecer o que fomos sempre. Aí reside a dificuldade!
Em artigo publicado no Jornal Correio Popular, o psicanalista Rubem Alves abordou de forma muito interessante o tema da transformação. Transcreverei a seguir um trecho do artigo, com a expectativa de que ao menos ele nos propicie alguma reflexão, nos auxiliando a efetivar as mudanças desejadas:
“As cigarras passam a maior parte de suas vidas debaixo da terra, alimentando- se das raízes das árvores. Disseram-me que há certas espécies de cigarras que chegam a viver 15 anos debaixo da terra. De repente, alguma coisa acontece, e surge dentro delas um impulso irresistível para mudar. Saem então dos seus túneis, sobem pelos troncos das árvores, arrebentam suas cascas, subterrâneas gaiolas, e se transformam em seres alados. Se elas não abandonarem suas cascas não se transformarão em seres alados. Continuarão a ser seres subterrâneos. Nossos demônios são nossas cascas. Abandonar as cascas é esquecer a forma subterrânea de ser. A grande transformação das cigarras acontece quando a morte se aproxima. É a proximidade da morte que lhes diz: ‘Chegou a hora de voar, cantar e fazer amor, para continuar a viver...’ Eu acho que a morte é o único poder capaz de nos trazer vida nova. A consciência da morte nos força a sair de nossas sepulturas, nos dá asas, nos convida a voar e a amar.”


Do baú - Último Dia

Do baú - texto escrito para publicação na Revista Destaque em agosto de 2005.



A música O Último Dia é de Paulinho Mosca, mas no CD que escutei a caminho do trabalho era o Ney Matogrosso quem cantava e perguntava:



“Meu amor, o que você faria Se só te restasse um dia Se o mundo fosse acabar Me diz o que você faria”.

Fiquei lembrando as coisas que estão acontecendo em nosso país e outras tantas que estão acontecendo pelo mundo afora. Há momentos em que de fato pensamos que, em todos os sentidos, o mundo está mesmo na iminência de acabar.
E aí? Se de verdade só nos restasse um dia? O que poderíamos fazer? O que gostaríamos de fazer? Se esse fosse um dever de casa, se tivéssemos que, como nos tempos de escola, escrever uma redação respondendo à pergunta: “Se só lhe restasse um dia, o que você faria?”. Iria à academia, ao trabalho, passaria no banco, pagaria contas e, no fim do dia, iria ao curso de inglês? Viveria exatamente como se não soubesse que o mundo ia acabar?
Talvez o mais fácil seja saber o que não faríamos. Identificaríamos nossos deveres, nossas obrigações, nossas responsabilidades – coisas que algumas vezes até nos dão prazer imediato, mas que fazemos principalmente porque acreditamos que existirá um amanhã?
Ao tentar listar o que efetivamente faríamos, possivelmente reconheceríamos nossos sonhos - coisas que sempre quisemos fazer e que muitas vezes não pudemos ou simplesmente, também, sempre deixamos para depois; nossos desejos - coisas que sabemos que nos farão um bem enorme, mas que, por algum motivo, não realizamos; e nossas experiências de amor e de beleza - coisas simples, que já fizemos várias vezes e que sabemos ser importantes para nós.
É dessa última categoria que penso que a essência da vida é feita, como um colar de contas. O tempo é o fio, no qual vamos enfiando experiências de amor e de beleza – assistir a um pôr-do-sol, dar um beijo na pessoa amada, ouvir linda música, fazer um passeio a cavalo, receber uma carta de uma amiga, olhar o filho saindo da escola, ler um bom livro, descansar na rede, sentir o cheiro da terra molhada depois da chuva, comer uma comida gostosa. Quando vivemos experiências como essas, por vezes sentimos que valeu a pena ter vivido a vida inteira só por um único desses momentos. E, se já houve muitos momentos desses na vida, que importa o que faremos no último dia?
Contudo, identificar nossos deveres, obrigações, responsabilidades, sonhos, desejos e nossas experiências de amor e beleza pode ser um exercício de autoconhecimento interessante. A mim, fez lembrar dois poemas há muito esquecidos no baú do coração – do Alberto Caeiro: “Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á o verdor na sua primavera, e um rio onde ter quando acabemos!”; e da doce poetisa goiana Cora Coralina: “Senhor, que eu não lamente o que podia ter, o que se perdeu por caminhos errados e nunca mais voltou. (...) Que eu possa agradecer a Vós minha cama estreita, minhas coisinhas pobres, minha casa de chão, pedras e tábuas remontadas. E ter sempre um feixe de lenha debaixo do meu fogão de taipa, e acender, eu mesma, o fogo alegre da minha casa, na manhã de um novo dia que começa”. Espero que no meu último dia, independente do que eu faça ou deixe de fazer, me mantenha calma e mansa, que não lamente o que não tive, seja grata pelo que tive e, até o último segundo, tenha esperança de que amanhã haja um novo dia.

Do baú - Coração partido ou por que a separação é tão difícil?

















Do baú - texto escrito em setembro de 2005 para publicação na Revista Destaque.



Por telefone recebi a notícia: “Bianca se separou”. Na mesma semana, uma outra amiga, sentada diante de mim, disse: “Me saparei”. Os tempos verbais indicavam claramente – as ações ocorreram no passado, estavam concluídas. Em casos de separação, entretanto, me atrevo a dizer, quase nunca é assim. É difícil saber quando começa a ruptura amorosa e, mais ainda, quando é que ela termina. Meu coração ficou apertado. Duas histórias de amor chegando ao fim... Imaginei o sofrimento de todos envolvidos e pensei, será que tem mesmo que ser sempre assim?
Separações e divórcios nunca foram tão numerosos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam para um aumento de 30,7% nas separações no País. O incremento foi superior nos divórcios, com 59,6%.
Embora separações e divórcios sejam freqüentes, as estatísticas em nada aplacam o sofrimento que se abate sobre nós quando acontece em nossa casa ou com alguém próximo a nós. Ninguém sabe direito como enfrentar a dor, muitas vezes acompanhada por decepção, disputas, traição, agressividade, abandono.
Em algumas culturas, a idéia de que um elo possa ser rompido não é percebida de forma tão trágica e, muitas vezes, solitária como na nossa. Entre os tuaregues, um povo nômade do deserto africano, as separações são oficializadas por meio de uma festa. Quando soube disso, pensei logo: “Ah, essa festa deve ser uma forma de fugir da tristeza provocada pelo abandono!” Nossa cultura valoriza o ‘até que a morte nos separe’, o amor que deve durar toda uma vida. Para nós, é difícil compreender uma sociedade baseada no amor não durável.
Antropólogos afirmam que as festas dos tuaregues são possíveis porque todo o grupo compartilha a idéia de que as relações entre os casais são, por vezes, efêmeras. As metamorfoses da vida são percebidas por eles com naturalidade, são passagens. A separação é uma passagem, como o nascimento, a iniciação feminina ou masculina na idade adulta, ou o casamento. O sentido atribuído ao provisório é o de inerente à vida, não tem a força pejorativa de instável, inseguro.
O antropólogo italiano Franco La Cecla, professor da Universidade de Veneza, escreveu um ensaio: Je Te Quitte, Mais Non Plus ou l’Art de la Rupture Amoureuse (Eu te deixo. Mas nem tanto. Ou A Arte da Ruptura Amorosa).
La Cecla classificou as separações que ocorrem em sociedades como as nossas em quatro categorias: Eu Te Deixo, Você Me Deixa, Você Faz Tudo Para Que Eu Te Deixe e Nós Nos Deixamos. Os dois primeiros casos supõem uma ação direta, pontual, mas não eximem os parceiros ‘agentes’ de serem percebidos como cruéis. No terceiro caso há um processo, que envolve uma suspeita, uma constatação e uma reação, por fim, os dois desempenham o papel de ‘alguém que maltrata’. Já o quarto caso, Nós Nos Deixamos, grande parte das vezes, leva as pessoas a pensarem que afinal de contas não se tratava de uma profunda história de amor. Todas as opções envolvem algum grau de sofrimento.
Embora La Cecla faça esta categorização, ele afirma: “Não há regras para viver ou amor ou a ruptura. O fim de um amor é também parte da história amorosa”. O momento da ruptura parece ser o momento avesso da paixão. Na base da idéia de viver a ruptura amorosa de maneira dolorosa, às vezes trágica, talvez exista a tentativa de recuperar a intensidade do momento do encontro inicial, da paixão, mesmo que de forma inversa.
Na maioria das vezes o mais difícil para quem se separa é saber o que fazer com a lembrança da felicidade que se sabe não ser mais possível – não com aquela pessoa, não daquele jeito, não como planejado. Em nossa sociedade, o mais comum é acreditar que a única forma de recuperá-la é lembrá-la com sofrimento, tristeza ou a saudade. Na hora da separação o amor é associado a fracasso, a morte.
O tempo da separação é uma estação, um período necessário para que as pessoas reflitam sobre o relacionamento, descubram um sentido, um propósito, para a ruptura. Este período de ruptura possivelmente durará o suficiente para que elas compreendam que viver o fim de um amor por vezes é parte da vida.
Por mais que desejemos que as pessoas das quais gostamos não sofram, que saiam logo dessa estação, não adianta apressar o rio, ele tem seu próprio curso. Minhas amigas estão se separando. Mesmo que a separação física já tenha acontecido ou esteja decidida, o processo da ruptura emocional pode estar apenas em uma etapa inicial.
Muitas vezes, quando alguém está sofrendo nos sentimos incomodados, impotentes. Rubem Alves – psicanalista, filósofo e poeta – escreveu: “Sabedoria é saber sofrer pelas razões certas. Sofrer pelas razões certas significa que estamos em contato com a realidade, que o corpo e a alma sentem as tristezas das perdas e que existe em nós o poder do amor”.
Segundo Rubem Alves, só não sofrem, quando para isso existem razões, aqueles que perderam a capacidade de amar. É o sofrimento que nos faz pensar. Pensamos para encontrar um jeito de fazer o sofrimento parar ou para dar um sentido ao sofrimento quando ele não pode ser evitado.
Em alguns momentos, este pensar precisa ser um ato solitário, em outros não. Ter alguém que nos escuta e nos acompanha nesta estação pode ser muito bom. De modo que sempre podemos deixar claro aos nossos amigos que sofrem, o quanto estamos dispostos a estar com eles, seja inverno ou verão. Sim, porque “É claro que o sol vai voltar amanhã”. Quando a gente esquece, poetas como Renato Russo usam sua arte para nos fazer recordar que haverá uma nova estação, repleta de possibilidades de vida, de amor.

Do baú - Controlar a raiva, trabalho de Hércules?

Retirado do baú - texto escrito em setembro de 2004 para publicação na Revista Destaque.



Foi uma cena da novela Celebridade - a briga entre a Maria Clara (Malu Mader) e a Laura(Cláudia Abreu) que me fez pensar sobre a raiva.
No dia seguinte ao da transmissão do episódio em que as duas brigaram, escutei várias vezes pessoas comentando: “Você viu a surra que a Maria Clara deu na Laura?”.
Será que o motivo de tal comoção seria o fato de que muitas pessoas em algum momento já tiveram vontade de dar uma surra como aquela em alguém?
É comum vermos pessoas nervosas, perdendo o controle e dando um “piti” nos mais diversos lugares – na fila do banco, no trânsito, nos restaurantes, no trabalho, na escola e na privacidade do lar. Como controlar a raiva e evitar o vexame e a culpa depois que o caldo já entornou?
Muitos psicólogos usam a história de Hércules para ilustrar o que ocorre nessa luta. O guerreiro tinha uma força prodigiosa e também um gênio explosivo e destruidor. Num dos seus acessos de raiva, Hércules, enfurecido, matou a mulher e os filhos. Foi então condenado pelos deuses a realizar doze trabalhos dificílimos.
O primeiro desses trabalhos foi a caçada ao Leão de Neméia. A fera amedrontava a população da vizinhança e não se podia fazer nada para matá-la, pois flechas, punhais e espadas não conseguiam penetrar a sua pele, que era invulnerável.
O leão morava numa gruta funda e escura. Ao aproximar-se, Hércules viu que espalhados pelo chão estavam pedaços de lanças e espadas de todos os tipos, quebrados pelo choque contra a pele indestrutível do animal. Hércules viu também os restos mortais de muitos guerreiros valorosos, que já tinham sido derrotados e devorados pelo monstro.
O herói aproximou-se da caverna e, quando o leão saiu e o atacou, Hércules não lutou contra ele, apenas abriu os braços e apertou-o tão fortemente que ele morreu sufocado. Hércules retirou a pele do leão e passou a usá-la em suas batalhas, como proteção. Como todas as histórias mitológicas, esta guarda um ensinamento.
O leão representa as forças agressivas e as necessidades instintivas que todos temos dentro de nós. Essas forças não podem ser destruídas porque fazem parte da nossa constituição psíquica. Mas elas podem destruir-nos, se a gente não souber lidar com elas.
Por baixo de cada demonstração de raiva, de agressividade, existe o medo. Uma mãe que tem raiva da filha que chega muito tarde em casa sem avisar onde estava. Será que essa mãe não teve medo de que a filha estivesse em perigo, se acidentasse, ou amassasse o carro justamente agora que ela está sem dinheiro?
controlar a raiva temos que identificar esse medo. Temos que fazer aquilo que Hércules fez com o leão – ir ao encontro dessas forças de braços abertos, reconhecendo-as como nossas. Se abraçarmos a raiva, entrando em contato com ela, podemos dominá-la usando nossa inteligência e nosso discernimento, colocando-a ao nosso favor, fazendo com que ela trabalhe para nós, como proteção, quando necessária.
Agora, se o “piti” já aconteceu, o jeito é mesmo pedir desculpas e procurar não perder a calma da próxima vez!

Do baú - Adolescência - Que tempo é esse?






















Do baú – escrito em fevereiro de 2006 para publicação na Revista Destaque.


Alguns dizem que adolescente é tudo igual, só muda o endereço! Bom, se muda o endereço, muita coisa muda. Não é mesmo? E, mesmo quando não muda o endereço, dois jovens, na mesma casa, criados pelos mesmos pais, podem ser muito diferentes.
A única semelhança percebida facilmente quando se trata de adolescentes é a grande preocupação de seus pais e também dos profissionais que trabalham diretamente com eles em como possibilitar que consigam se cuidar, se prevenir de situações que coloquem em risco sua integridade e sua felicidade.
Muitos pais afirmam que “não dão mais conta” de seus filhos quando eles chegam à adolescência. Sentem-se perdidos, sem saber o que fazer. A família é um sistema. Tudo está interligado. O que acontece a um membro afeta o outro e vice-versa. As transformações do jovem na adolescência, assim, não são apenas individuais. Todos são afetados. Toda a família se transforma, ainda mais se o jovem está em sofrimento.
Adélia Prado escreveu: “Pior inferno é ver um filho sofrer sem poder ficar no lugar dele”. Vinicius certamente também sabia disso, pois escreveu a seu filho: “Eu, muitas noites, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua”.
Contudo, é inevitável que os filhos cresçam e sofram. Os pais são arcos que disparam flechas. Entretanto, os pais são também ninho. Rubem Alves, em uma de suas crônicas, “O Pai”, cita Bachelard, que amava os ninhos, e escreveu sobre eles: “Para o pássaro o ninho é indiscutivelmente uma cálida e doce morada. É uma casa de vida: continua a envolver o pássaro que sai do ovo. Para este, o ninho é uma penugem externa antes que a pele nua encontre sua penugem corporal”.
Que felicidade enche o coração de um pai ou de uma mãe quando acolhe o filho em seus braços! Quando crianças, o que os filhos sentem no colo dos pais é que estão no ninho, estão protegidos, tudo está bem, não há porque ter medo. A criança também se sente segura se vê que os olhos de seu pai a protegem.
Segundo Rubem Alves, os olhos também são colos. Olhos também são ninhos. O pai fica olhando o filho que se aventura na piscina ou no parquinho – “Estou aqui! Estou vendo você, não tenha medo!”. É impossível calcular a importância destes momentos na vida de uma criança e também na vida de um pai e de uma mãe.
Entretanto, a vida dos filhos não está no ninho, mas no vôo. Isso é inegável e bom. Ninhos não podem transformar-se em gaiolas.
A adolescência é o tempo do vôo. Na adolescência, muitas vezes, tudo o que os jovens querem é fugir dos olhos dos pais, de seus abraços. Na frente dos amigos então, nem pensar.
Na crônica citada, o autor pontua que adolescente não quer ninho, quer asas. Muitas vezes a casa passa a ser só um ponto de partida para vôos em todas as direções. Voltar para casa é quase sempre algo a ser retardado, adiado. A vida não está mais no ninho.
Contudo, o ninho não deixa de ser ninho quando o pássaro está voando. Eles ainda têm que voltar, mesmo que seja contra a vontade. Muitos pais, só quando ouvem o barulho da chave na porta, sentem-se tranqüilos – o ninho está novamente preenchido!
Se as mudanças familiares estão trazendo sofrimento para o pai, para a mãe e para os filhos, a psicoterapia pode ser um caminho. Muito mais do que um sinal de que os pais não estão mesmo “dando conta”, procurar um psicoterapeuta pode ser um presente que eles se dão, possibilitando que, diante de tantas demandas, eles se fortaleçam para passar por essas transformações da melhor maneira possível.
Por que apenas esperar o tempo passar, se o sofrimento está acontecendo aqui e agora?

sexta-feira, 5 de junho de 2009

GENTILEZA GERA GENTILEZA

Em dezembro de 2006, a equipe de saúde do Tribunal estava às voltas com a avaliação das atividades realizadas durante o ano. Contávamos o número de atendimentos, consultas, encaminhamentos; analisávamos os projetos implantados; considerávamos as conquistas individuais e grupais; e refletíamos sobre as dificuldades encontradas e sobre nossas limitações.
Foi quando recebemos um maravilhoso buquê de flores. Junto com o buquê, um cartão, em que nossa atenção, empenho, e cuidado eram reconhecidos. Entretanto, o cartão não estava assinado.
Em tempos de pouco tempo para o outro, de tempos “sem-tempo”, esta gentileza fez com que toda a equipe se sentisse revigorada, entusiasmada para fazer o planejamento de atividades para 2007.


Gentileza tem um poder muito grande. Segundo o dicionário significa cortesia, amabilidade, fidalguia, bom tratamento.
O acontecido fez com que lembrássemos de uma lenda do Oriente:

Um jovem chegou à beira de um oásis junto a um povoado e, aproximando-se de um velho, perguntou-lhe:
– Que tipo de pessoa vive neste lugar?
– Que tipo de pessoa vivia no lugar de onde você vem? – perguntou, por sua vez, o ancião.
– Oh, um grupo de egoístas e malvados – replicou o rapaz – estou satisfeito de haver saído de lá. A isso o velho replicou:
– A mesma coisa você haverá de encontrar por aqui.
No mesmo dia, um outro jovem se acercou do oásis para beber água e, vendo o ancião, perguntou-lhe:
– Que tipo de pessoa vive por aqui?
O velho respondeu com a mesma pergunta: – Que tipo de pessoa vive no lugar de onde você vem?
O rapaz respondeu: – Um magnífico grupo de pessoas, amigas, honestas, hospitaleiras. Fiquei muito triste por ter de deixa-las.
– O mesmo encontrará por aqui – respondeu o ancião.
Um homem que havia escutado as duas conversas perguntou ao velho:
– Como é possível dar respostas tão diferentes à mesma pergunta?
Ao que o velho respondeu: – Cada um carrega no seu coração o meio em que vive. Aquele que nada encontrou de bom nos lugares por onde passou, não poderá encontrar outra coisa por aqui. Aquele que encontrou amigos ali, também os encontrará aqui porque, na verdade, a nossa atitude é a única coisa na nossa vida sobre a qual podemos manter controle absoluto.
Nosso ambiente de trabalho, de vida, pode ser aquilo que queremos que ele seja. Gentileza gera gentileza. Sempre é tempo para uma palavra de amizade, para um telefonema cordial, para um sorriso de afeto, dirigido mesmo àqueles que parecem endurecidos e impermeáveis às boas maneiras.
Este texto foi escrito em fevereiro de 2007 para publicação na Revista Destaque, como um singelo agradecimento a “nosso admirador secreto”, e a todos que naquela ocasião nos enviaram cartões, e-mails e abraços de estímulo pelo trabalho realizado naquele ano.
Hoje a equipe recebeu novos membros e tivemos que gentilmente procurar abrir espaço em nossas agendas e no próprio local de trabalho para acomodá-los, recebê-los. Eu me lembrei então, novamente da lenda do Oriente. Espero que eles tenham deixado pra trás bons colegas de trabalho...

Do baú - Onde está sua felicidade?

Texto retirado do Baú - escrito em 27/11/2004 para publicação na Revista Destaque.







Na véspera do dia das crianças, na fila do caixa das Lojas Americanas, inevitavelmente, escutei um casal conversando. O marido perguntou: “Sabe qual é a Barbie mais cara que existe?”. A resposta veio em seguida, sem nem dar tempo para a esposa pensar: “É a Barbie divorciada, que vem com a casa, a cama, o armário, a cozinha, a piscina, o carro, o cavalo e até com o avião do Ken!”.
Não achei lá muita graça, mas a piada me fez pensar na Barbie. Ela é mesmo uma boneca diferente, parece que nunca está completa. Os fabricantes estão sempre lançando um novo “complemento”. E nem adianta comprar o novo objeto, logo haverá um outro a ser comprado. É como a cenoura na frente do burro... nunca será comida. Esta pitada de infelicidade que acompanha a Barbie é a regra fundamental da sociedade consumista: é preciso que as pessoas não se sintam felizes com o que têm para que trabalhem e comprem aquilo que não têm.
Mãe, compra pra mim... Eu quero tanto!” E lá estamos nós, pais e filhos, presos numa arapuca consumista. Em uma antiga propaganda, um garotinho sorridente mostrava a tesoura do Mickey em sua mão e falava a um outro, que estava triste e cabisbaixo: “Eu tenho, você não tem!”. Desde pequenos somos induzidos a pensar que estamos infelizes porque não temos algo. Se tivéssemos, seríamos felizes. O jeito de ser feliz é comprando.
A verdade é que as crianças pequenas são capazes de se alegrar com brinquedos que não são como a Barbie. Elas se alegram jogando dominó, empinando pipa, fazendo bolinhas de sabão ou comidinhas de faz-de-conta. As crianças pequenas divertem-se com coisas simples porque para elas tudo é espantoso: uma nuvem, um ovo, uma pedra, uma minhoca. Elas têm os olhos dotados daquela qualidade que para os gregos era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Elas vêem coisas que nossos olhos adultos já não vêem.
A saída para a arapuca do consumismo talvez seja essa – voltar a ver o mundo com olhos de criança que ainda não pede a Barbie, colocar nossa felicidade bem ao alcance das nossas mãos. Acho que era isso que a Adélia Prado queria quando rezou: “Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...”.
Nietzsche sugeriu que “a maturidade de um homem é encontrar de novo a seriedade que tinha quando criança, brincando”. O centro da filosofia de Nietzsche é o retorno à infância. Segundo ele, nossa trajetória começa como camelos, animais de carga, que obedecem à voz do dono. Depois, passamos por uma primeira metamorfose, o camelo transforma-se em leão, guerreiro, dono de sua vontade. Por fim, uma última mudança ocorre: para que a vontade do leão se realize, ele se transforma em criança, que só faz brincar.
São muitos os estudos da psicologia das crianças. Estudamos as crianças para ensiná-las a viver no mundo adulto. É uma pena que não existam estudos com o objetivo contrário: ensinar aos adultos a maneira de ser das crianças, que colocam sua felicidade no ser e no fazer, não no ter.