quinta-feira, 10 de julho de 2008

Entretantos(as) - Minha irmã



No sábado, 5 de julho, véspera do aniversário em que Frida Kahlo faria 101 anos, fui ver a exposição Entretantos (as) dos formando em artes plásticas da UnB. Por quê? Minha irmã Fátima Meira fez-se artista plástica ao longo da vida, mas quis diplomar-se e assim fez. Fui lá prestigiá-la e, como tudo que me causa impacto acaba virando um post, lá vai:
A instalação Tempus Fugit (que quer dizer o tempo foge, a vida é breve) montada por ela para a exposição Entretanto(as) é, à primeira vista, um trabalho surrealista, mas - não querendo incorrer no mesmo erro de André Breton – já reconheço que não é.

Em 1938, Andre Breton qualificou a obra de Frida de surrealista em um ensaio que escreveu para a exposição dela na galeria Julien Levy de Nova Iorque. Frida, mais tarde declarou: "pensavam que eu era uma surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria realidade".
Diante da instalação de minha irmã percebi logo, não, não é sonho - é realidade. Em comum com a obra de Frida - a sensação de desconforto, de perturbação. A quantidade de informações em um pequeno espaço reforça a sensação. O primeiro pensamento foi : “Nossa, é muito!”. Como todas as acepções que o MUITO tem. O que tem de incomum? Ele usou só o preto, o branco e o raro e gritante vermelho sangue. Não pintou. Mas cortou, colou, filmou, fotografou, costurou. Ah, pintou sim, e muito. Bordou, tricotou e, pode-se dizer que esculpiu, também.
Por onde eu começo essa conversa? Pela cadeira de balanço, sem dúvida.
Cadeira de balanço – objeto que nos remete a aconchego e acolhimento, é isso , não é? Não é. Repleta de lâmpadas, subtamente a cadeira de Fátima se acende e nos traz uma sensação diametralmente oposta – a de desconforto, de agonia. As lembranças que de início eram de cadeiras de amamentar, de cochilar, de ler, de ver TV – de repente passam a ser de cadeiras de rodas, cadeiras de carro que pegam fogo, vidros que se quebram, explodem, em acidentes ou por causa de tiros. Sensações, pensamentos e emoções completamente opostos atados em um mesmo objeto no espaço de tempo exato de um minuto.
Sim, as lâmpadas ficam acesas por exatos 60 segundos. Tempo em que você dirige seu olhar para outro objeto - uma clepsidra. A clepsidra é “tipo assim” uma ampulheta de líquído. Sabe qualé? Um relógio. Na instalação o líquido é vermelho e passa por entre recipientes de soro. Agora, o primeiro pensamento foi algo meio assim Arnaldo Antunes: “O pulso ainda pulsa! O corpo ainda é pouco.”
Para mim o momento foi de agonia total. Explico: Quando minha mãe ficava internada uma das coisas mais perturbadoras para mim era vigiar o tal do soro. As veias delas eram muito finas, era difícil acertá-las. Perder uma veia era pior que perder um pênalti em final de copa do mundo, muito pior. Tínhamos que ficar de olho no soro, contar as gotas, correr atrás das enfermeiras, seduzi-las para que não deixassem o soro acabar. Até hoje, quando minha vida não está fluindo, sonho com o soro entupido.
Meu filho Mateus foi à exposição comigo e ele pensa que a tia é uma extensão do corpo dele e por isso ele pensa que o que é da tia é dele, e aí vocês já virão né? Ele mexeu na tal da clepsidra e a merda (minha mãe também fez uma colonostomia, se é que vocês me entendem) do líquido vermelho espalhou no chão. No chão não, no tabuleiro de xadrez.
Sim, o chão em que a instalação está montada é quadriculado, preto e branco. Sacou? Outra coisa muito louca. O xadrez me lembra a Alice perdida no País das Maravilhas. Quando o líquido caiu no chão eu ouvi a rainha gritando: “Cortem as cabeças! Cortem as cabeças!”.Gente, não foi legal!Tive enxaqueca no domingo e na terça feira!
O livro e o filme – Alice no País das Maravilhas – têm símbolos muito fortes, alguns deles presentes na instalação. Desde pequena, eu tenho sonhos com personagens do filme. Quando estou sendo pressionada a decidir alguma coisa, ou quando alguém esta me colocando contra a parede, sonho com aquela lagarta, fumando narguilé, jogando fumaça na minha cara e lerdamente falando: “Quem és tu?”. A instalação toda parece nos perguntar isso.
O espaço em que Tempus Fugit Fugit foi montada é louco. Você entra por um estreito canal (vaginal?)e chega a uma sala escura, uma espécie de útero, bem lá no fundo está a instalação. A realidade é louca. Quem não consegue dar um sentido a realidade acaba louco.
Uma boneca com um daqueles colares “protetores” que impedem que os cachorros fiquem lambendo seus rabos operados é um dos objetos marcantes na instalação - o ID aprisionado. Novamente o encontro dos opostos: o duro e o mole, o prazer e a dor. O lúdico e o lúcido estão lá enlouquecidos e adoecidos.
Mais uma coisa louca, outro dos meus sonhos, este mais freqüente, foi parar em um vídeo, dentro da instalação. Sei lá eu como! (Acho até que sei.) Quando eu ando acelerada, querendo fazer mil coisas ao mesmo tempo, tenho sonhos em preto e branco, onde vez por outra, aparece o coelho do filme Alice no País das Maravilhas correndo, colorido, olhando o relógio e falando: “É tarde, é tarde, é tarde, é tarde, é tarde!”.
Sim é isso, tem um vídeo dentro da instalação. Dentro de um oratório que mistura sagrado e profano, vida e morte, moderno e antigo, passado e futuro - rola um vídeo. No vídeo estão memórias, lembranças, coisas que o vento leva, que a faca corta – tudo em preto e branco, mas, de vez em quando aparece o coelho da Alice, colorido, correndo e falando: “é tarde, é tarde, é tarde, é tarde, é tarde, é tarde”.
Li no Jornal que a instalação da minha irmã era autobiográfica. Bem, se existe uma peça evidentemente autobiográfica na instalação é um vestido. É um vestido simples, leve, branco, (de uma moça nascida no interior do Ceará), que vai sendo marcado pela vida, pelas pessoas que por ela passam. O vestido é sobrecarregado pelas chaves das portas das casas nas quais morou, das gavetas de mesas nas quais trabalhou. Poderia ser o vestido da noiva do Barba Azul, daquela que não podia olhar pelo buraco da fechadura, mas se arriscou. No cabideiro, ao lado do vestido, repousa uma máscara, daquela que fantasia – a figurinista.
A instalação tem outras peças igualmente fortes e diferentemente perturbadoras (o cabideiro em que o vestido está pendurado, não é bem, um cabideiro...), cada objeto é único, mas magicamente tem todo o conteúdo da exposição em si mesmo.
É um retrato de família, ou melhor, de famílias...

Entretanto(as) estará aberta até dia 12 – sábado – meio dia - no Espaço Piloto da UnB – Prédio da Artes Cênicas (aquele com os azulejos do Athos Bulcão). Dona Encrenca recomenda aos aventureiros!

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