Em uma bela manhã de primavera - o céu azul, azul - uma cliente que eu já acompanhava há quase um ano, entrou no consultório de um jeito nada peculiar.
Ela, em geral, chegava com um sorriso no rosto. – "Bom dia! E aí, doutora? Como foi o fim de semana?". Andava até a poltrona com se fosse um barco, navegando. Caminhava com certo molejo e atracava suavemente na poltrona.
Naquela segunda-feira, ela mal me olhou. Entrou esbaforida, jogou-se na poltrona, colocou as mãos fechadas sobre os olhos e, enquanto eu me sentava diante dela, soltou uma frase curta e direta:
- Eu sou bipolar! Eu sei que sou!
Meus óculos escorregaram para a ponta do meu nariz, quando eu, no susto, tentei olha-la nos olhos.
Não que ela não fosse bipolar. Era. Dos pés ã cabeça, da primeira linha do CID à última do DSM, o diagnóstico lhe cabia, sem sombra de dúvida.
Eu jamais havia lhe colocado um rótulo. Sinalizava suas alterações de humor, os riscos de seus altos e baixos, as conseqüências para quem estava perto.
Em terapia ela já havia explorado inúmeras vezes as dores e delícias de uma vida nada padrão, nada careta.
Ela fazia uso de medicamentos desde a adolescência, com dificuldade, com resistência, por vezes anarquicamente, mas usava e sabia por que os usava. Ou não sabia? Fiquei confusa, surpresa. Perguntei: - E o que é ser bipolar?
Ela sentou-se mais na beira da poltrona e apontando o dedo na minha direção, falou:
- Viu? Se eu não fosse você ia me perguntar: De onde você tirou essa idéia?
Respondi com um leve sorriso nos lábios:
- Se você entrasse aqui correndo e me dissesse assim -‘Eu sou uma abóbora! Eu sei que sou uma abóbora!’, eu ia te perguntar: O que é ser uma abóbora? O que muda na sua vida agora que você descobriu que é uma abóbora?
- E que eu não quero ser bipolar. Ser bipolar é ser doente. Eu quero ser excêntrica, doida, diferente, especial, genial.
Ficamos as duas em silêncio, nos olhando, por uns minutos. Aí ela se acomodou na poltrona, respirou e disse:
- E aí? Como foi seu fim de semana?
Eu, como em todas as outras sessões respondi: - Normal. E o seu?
Então, ela, como em todas as outras sessões, começou a me contar todas as excentricidades e doidices de seu fim de semana.
Enquanto ela falava, pensei no Cazuza – o poeta da minha geração. A letra do Blues da Piedade passou pela minha cabeça e, pela primeira vez, vez total sentido.
Seus versos falam de:
Pessoas de alma bem pequena/ Gente que não muda quando a lua é cheia/
Os versos pedem:
Piedade Senhor piedade pra essa gente careta e covarde/
E Cazuza propõem:
Cantar pra pessoas fracas/ Que estão no mundo e perderam a viagem/ Somos iguais em desgraça/ Piedade senhor pra esta gente/ Pra essa gente careta e covarde/ Lhes dê grandeza e um pouco de coragem.
Bom material para minha própria terapia – Nós, os médios, medianos – estamos condenados à mediocridade, à dita normalidade.
Senhor, piedade de nós!
Este post é ficcional. Na verdade, ele é fruto de um delírio. A única coisa real é que, só agora, o Blues da Piedade passou a fazer sentido para mim.
3 comentários:
De fato, a energia, a temeridade, o precipício, a vida por um fio são embriagantes.
Especialmente na infância, adolescência e juventude quando, ainda não adultos,
não dispomos da noção de consequência para balizar nossas ações.
Temperando com a rebeldia, nos fazem homens e mulheres-bomba por décadas, até pela vida inteira.
Nada contra a excentricidade. Porém, a busca diária por um limite - um eco que responda ao nosso grito e dê sentido a essa vida - às vezes nos faz queimar em nossa própria chama e costuma doer muito.
E assim vamos seguindo até o dia em que a gente descobre a vida como uma tela
onde desenhamos nela o sentido que pudemos dar, e não o que quisemos, arrogâncias à parte, dar.
E aí, tomara que o desenho seja no mínimo inteligível para que não sejamos invadidos por uma enorme sensação de perda e vazio.
Talvez seja essa uma das funções da nossa profissão:
mediar para nós e para as pessoas os nossos e seus desenhos (in)inteligíveis - não necessariamente belos -
para no final de tudo, com satisfação, brindarmos todos pela vida que tivemos.
Obrigado pela lembrança.
Parabéns pelo blog e texto da 'Dona Encrenca'.
Até outra.
Augusto Cesar
Augusto, gostei muito do seu comentário sobre o texto.
Depois fiquei pensando em uns outros doidinhos (além do Cazuza) que eu admiro - Florbela Espanca, Hemingway, Picasso, Dali, Magritte, Van Gogh, Fernando Pessoa, Wittgenstein, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Silvia Plath, Virginia Woolf, Maiakovski. Uma lista de gente excêntrica, nada padrão...
Minha conclusão: A normalidade tem um preço, mas a loucura custa caro, caríssimo!
Obrigada pela atenção,
Abraço,
Daniella
Onde vc tomou esse chá de escrivinhadeira??? Disparou a produzir, hein...enquanto isso, eu e seu marido, corremos...
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