Esta semana, um amigo, também psicólogo, me contou que estava atendendo em seu consultório uma mulher de uns 40 anos. Estava no mesmo emprego há 20 anos, ela havia tido um “colapso” no posto de trabalho, seu braço literalmente “travara”. Em tratamento por LER/DORT[1] e com sintomas de depressão, a mulher o procurara buscando ajuda. Meu colega compartilhou comigo a história desta mulher porque não compreendia como ela, por tanto tempo, conseguira ignorar a dor. “Por que ela só parou quando ‘travou’?”, se perguntava ele.
Infelizmente, o que aconteceu com essa mulher não é raro, chama-se exaustão por sobrecarga de trabalho. Estamos em uma época em que é comum nos auto-acelerarmos, de tal forma que por vezes paramos de sentir. Tratamo-nos como máquinas. Ignoramos os sinais de cansaço, a vontade de ir ao banheiro, de beber água, de jogar conversa fora com o colega da mesa ao lado. Até que, ficamos exaustos e, como máquinas, “pifamos”, damos “defeito”, “travamos”.
Assim como há pessoas que diariamente procuram esculpir o corpo em academias, para atingirem seus ideais de beleza, há pessoas que vivem apressadas e sem tempo, para atingirem seus ideais de sucesso. No trabalho querem ser insubstituíveis, indispensáveis, elas têm medo de perder o reconhecimento, o emprego, a gratificação.
Em geral são pessoas que se apaixonaram por seus trabalhos e reagem à instituição como se ela fosse mesmo uma pessoa. Passar naquele concurso, entrar naquela instituição, representou muito em suas vidas, possibilitou que elas ajudassem parentes menos favorecidos, casassem, comprassem um imóvel, fizessem as viagens dos seus sonhos e, principalmente, constituiu suas identidades. O pensamento que estas pessoas têm é mais ou menos assim: “Como é que, depois de tudo o que a instituição me proporcionou, eu vou decepcioná-la? Eu não posso parar!”.
Mais de uma vez, acolhi no consultório pessoas com um sofrimento intenso, nas mãos traziam atestados médicos concedendo-lhes licenças para tratamento da própria saúde, que elas não pretendiam apresentar no setor de trabalho. “O que meu chefe vai dizer? E meus colegas? Não posso deixá-los na mão!”. Tudo ficava ainda mais difícil quando eu pontuava que o tal “tratamento da própria saúde” devia incluir dar-se alguma forma de prazer – fazer uma massagem, ir ao cinema, passear, viajar. “Como assim? E se eu encontrar alguém no shopping? O que as pessoas vão dizer quando eu voltar ao trabalho bronzeado?”.
Olho para essas pessoas com profunda compaixão, é difícil escapar do canto das sereias.
Pelo que sei, a primeira história de sereias remonta à "A Odisséia" de Homero. De acordo com a mitologia grega, seu canto era tão belo que os marinheiros hipnotizados acabavam jogando seus barcos contra os recifes.
Ulisses, obrigado a passar com seu navio diante das sereias, mas advertido por Circe, tapou suas orelhas e recomendou que todos os seus companheiros fizessem o mesmo. Mandou que amarrassem seus pés e mãos ao mastro principal. Além disso, proibiu que o tirassem de lá, se, por acaso, ouvindo o canto das sereias, ele exprimisse o desejo de sair. Essas precauções não foram inúteis. Ulisses, mal ouviu as doces e sedutoras vozes das sereias, deu ordem para que seus marinheiros o soltassem, o que felizmente eles não fizeram.
Já nos relatos de Ovídio, um oráculo predissera que as sereias viveriam tanto tempo quanto pudessem deter os navegantes à sua passagem, mas desde que um só passasse sem para sempre ficar preso ao encanto de suas vozes e das suas palavras, elas morreriam. Por isso essas feiticeiras, sempre em vigília, não deixavam de deter todos os que chegavam perto delas e que cometiam a imprudência de escutar os seus cantos. Elas tão bem os encantavam e os seduziam que eles não pensavam mais no seu país, na sua família, em si mesmos. Esqueciam de beber e de comer e acabavam morrendo.
Quando os Argonautas passaram por suas paragens, entretanto, as sereias não conseguiram atraí-los. Orfeu, que estava embarcado no navio, tomou sua lira e tocou tão lindamente que elas emudeceram.
Creio que da mitologia grega vem, também, a solução para a exaustão no trabalho. É importante que alguém, como Circe fez com Ulisses, nos avise sobre os perigos, mostre-nos os sinais; é necessário ter determinação para nos livrarmos da sedução, do encantamento; é preciso pedir ajuda ou, então, nos encantarmos por algo verdadeiramente belo, como a música de Orfeu.
O jeito de escapar ao canto das sereias é inventar no cotidiano, nos relacionamentos, no trabalho, uma vida mais centrada em valores como amizade, amor, autoconhecimento, reflexão crítica. Parece pouco, mas não é - é o trabalho de um herói grego.
[1] Dá-se o nome de LER ao conjunto de doenças causadas por esforço repetitivo. A LER envolve tenossinovite, tendinite, bursite e outras doenças. A LER também é conhecida como lesão por trauma cumulativo. Muitos estudiosos já preferem chamar as LER de DORT - doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho.
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